Entrevista com Sifu Marcos para a revista KF Erik Souza, Edição de Janeiro de 2023 com fotos inéditas








Wing Chun, Conheça Esta Arte Arte Marcial



O Wing Chun ganhou muito destaque nos últimos anos com o sucesso da série de filmes Ip Man – O Grande Mestre, porém, este estilo de Kung Fu Wushu não foi criado tão recentemente.  Este estilo é conhecido pelos seus movimentos curtos, simples e eficientes, características que chamaram a atenção do grande astro e mestre Bruce Lee que praticou Wing Chun diretamente com o mestre Ip.

No Brasil, o estilo vem ganhando cada vez mais adeptos, logo, convidamos o Sifu Marcos de Abreu, da Brazilian Wing Chun Academy, para falar mais sobre esta arte marcial chinesa.  Sifu Marcos é especialista em Wing Chun, escritor, treinou atletas campeões em Kung Fu Wushu, assim como atletas do UFC, foi aluno do grão mestre Li Hon Ki (1952 - 2016), um dos introdutores de Kung Fu Wushu no Brasil e hoje estuda com Sifu Gorden Lu, sobrinho-neto de Ip Man.  

Confira abaixo como foi este bate papo e aprenda mais sobre o estilo Wing Chun de Kung Fu Wushu.  


1. Sifu, muito obrigado por aceitar o nosso convite. Falando sobre o Wing Chun, dizem que este estilo foi criado no sul da China, mas por quem e quando ele foi criado?  

“Há duas versões que devemos levar em conta quando analisamos uma explicação para a origem de um estilo de Kung Fu: a primeira e mais importante é a tradição oral, as histórias que são passadas de mestre para discípulo de geração a geração. É como o seu mestre lhe contasse coloquialmente no dia-a-dia. Aqui não há qualquer preocupação em seguir científica e cronologicamente o desenrolar dos fatos, mas contar uma espécie de "moral da história" que envolve o respeito aos ancestrais, o funcionamento estratégico da arte e uma exortação ética de seu uso para o bem da sociedade e preservação das tradições chinesas. Havia a necessidade de se esconder os nomes reais de mestres e substituí-los por personagens folclóricos. Isso acontece porque no passado os mestres corriam risco real de serem mortos por serem defensores da derrubada da Dinastia Ching. 

Outra versão, mais científica, é a história documental, os fatos comprovados e ordenados cronologicamente que nos ajudam a entender como uma arte se desenvolveu de acordo com as demandas de seu tempo, os acontecimentos políticos e culturais. A melhor forma de entender mais profundamente uma arte marcial chinesa em sua origem é chocar a tradição oral com o que há de documentação a respeito, tendências e mesmo modismo de outros estilos praticados na mesma época, intercâmbios, mudanças tecnológicas, etc. Isso porque há uma dificuldade de se estudar arte marcial chinesa pela falta de elementos que comprovem elementos passados na tradição oral de muitos estilos. As pessoas tendem a desprezar a tradição oral hoje em dia. Mas se é verdade que quem conta um conto "aumenta um ponto", também é verdade que toda mentira tem um fundo de verdade. Isso, no ocidente é o equivalente a importância de se ler romances. E não é um romance um compilado de mentiras? Mas os grandes romances nos dão a perspectiva de ver a vida sob o olhar de histórias contadas por outras pessoas, muitas vezes baseados em experiências e fatos reais, e com a experiência artística de poesia e beleza.  Arte marcial chinesa também é assim. 

Segundo a tradição oral o Wing Chun teria surgido a partir das observações de uma monja, chamada Ng Mui (ela mesma, uma dos Cinco Anciãos remanescentes da destruição do Templo Shaolin), sobre uma luta entre um grou e uma serpente. Ela saia regularmente do templo da Garça Branca e descia a montanha para comprar tofu com Yim Yee, que seria um ex-discípulo do templo e tinha uma filha adolescente chamada Yim Wing Chun. Em certa ocasião um bandido chamado Wong teria tentado forçar o pai de Yim Wing Chun a ceder sua filha para que se casasse com ele. Acontece que sua filha já havia sido prometida em casamento a outro jovem, como mandava a tradição da época. Ng Mui, ao saber da história, propôs-se a ensinar a jovem a lutar. Na data em que Wong prometera voltar para desposar a moça à força, Yim Wing Chun desafiou e derrotou Wong, casando-se com Leung Bok Tao, tendo este nomeado posteriormente o estilo de "Wing Chun Kuen" em homenagem à sua esposa. 

No que temos de origem histórica real do Wing Chun, sabemos que "Wing Chun" (Canção da Privamera) é de fato uma leve corruptela do nome Weng Chun (Eterna Primavera), o nome da cidade onde o estilo surgiu, provavelmente dividindo uma origem em comum com o estilo da Garça Branca. Repare a repetição das referências. No estilo da Garça Branca a tradição oral também relata uma monja, só que de nome Fang, que teria ensinado a uma moça que observa a luta entre dois animais (garça versus garça, neste caso) e cria um estilo para vingar a morte do pai. Esta história chegou ao Japão no século XIX, está relatada no Bubishi e tem relação com a origem do que é hoje o Karatê Do. Em 2009, um historiador americano chamado Stanley Henning encontrou a primeira referência documental de que realmente existiu uma mulher, casada com um comerciante local, que tinha uma escola com vinte e quatro discípulos na cidade de Weng Chun, chamada "Ding Número Sete". Seu nome estava anotado num anuário geográfico que data ainda do começo para meados do século XVII, muito antes do estabelecimento formal da maioria dos estilos modernos mais famosos do sul da China. Suspeita-se que embora o Wing Chun tenha semelhanças com a Garça Branca (inclusive em trechos de formas antigas) em algum momento posterior o estilo da garça se fundiu com um estilo de serpente, dando origem ao que chamamos Wing Chun moderno, com características próprias, durante o período em que o estilo foi preservado por uma trupe artistas de Teatro de Ópera Cantonesa que usava para seu deslocamento nos rios os juncos (barcos) pintados de vermelho, os Hung Suen.”  


2. Muitos estilos sulistas foram desenvolvidos para a guerra e acabaram sendo utilizados nas várias batalhas que aconteceram na China durante a Dinastia Qing, o Wing Chun também teve esta finalidade ou é um estilo mais voltado para a autodefesa?  

“Essa ideia de que os estilos sulistas foram desenvolvidos para a guerra é só parcialmente verdadeira. É fato que ao longo de seus respectivos desenvolvimentos, vários estilos de Kung Fu que inicialmente tiveram forte influência de manuais militares foram mudando sua lógica de funcionamento à medida que muitas de suas armas foram caindo em desuso, seja por questões logísticas ou militares, e substituindo estes elementos por outros. A função do Kung Fu nunca é apenas utilitária, ou seja, no sentido de funcionar apenas para um fim específico. No Kung Fu há folclore, ritos, senso de estética, preceitos morais e tradições culturais que se perpetuam no tempo. Muitos dos praticantes de estilos sulistas, entretanto, tinham em seu coração o desejo de restaurar a dinastia Ming, destronando os manchus e reconduzindo a etnia Han de volta ao poder. Para isso muitos destes estilos tomaram parte, direta ou indiretamente, em sociedades secretas com o objetivo de fomentar rebeliões, utilizando para isso seu conhecimento marcial. 

É tido que praticantes de Choy Lee Fut e Wing Chun estabelecidos nos Hung Suen (Barcos Vermelhos) teriam tomado parte na rebelião de Tai Ping (1854), o que teria levado o governo manchu e desmontar e proibir a Companhia de Ópera de funcionar, tendo muitos de seus integrantes se radicado em Foshan, que seria o berço dos estilos modernos de Hung Gar, Wing Chun e Choy Lee Fut. 

O Wing Chun tem uma lógica de funcionamento bem objetiva; seu soco em alguns estilos (Ip Man e aparentados) acabou se adaptando e especializando nos contragolpes na curta distância, o que o deixou de certa forma limitado no ataque e, assim sendo, para competições de alto rendimento. Assim sendo, olhando sobre o prisma de nosso tempo e comparando com outras lutas modernas, o Wing Chun pode sim ser definido como mais propenso à defesa pessoal, bem focado nos primeiros e muitas vezes decisivos movimentos. O Wing Chun se especializou naquilo que chamamos nos estilos do sul de "Kiu Sao" (Mãos em Ponte), onde o exercício Chi Sao é o ápice da sofisticação metodológica. Falando em linguagem de gente, o Wing Chun é muito bom nos bloqueios, usando basicamente variações de três movimentos, governados por três conceitos que dão origem a todo o seu repertório técnico. Ao contrário de lutas esportivas onde subjugar o outro é importante, no Wing Chun estamos tão interessados não tanto em bater, mas em não sermos atingidos. 

Isso não quer dizer contudo que o Wing Chun não tenha a sua combatividade, seu emprego em brigas e desafios no passado é bem conhecido e relativamente bem documentado. Em termos meramente conceituais, contudo, se você é um lutador de Wing Chun e se envolveu numa briga contra a sua vontade, significa que falhou em sua estratégia. Não estamos interessados em lutar, mas interessados em vencer. É um mindset totalmente diferente.”



3. O Wing Chun possui movimentos bem característicos, ele foi desenvolvido baseado em outros estilos de artes marciais? Ele possui movimentos imitativos, golpes de vários animais?  

“Como mencionei numa resposta anterior, o Wing Chun é, muito provavelmente, uma mistura do estilo da Garça Branca da cidade de Weng Chun com a Serpente da Montanha Emei; entretanto há algo muitíssimo interessante aí. Ao longo de seu desenvolvimento, o Wing Chun passou de uma mera imitação ou referência simbólica do gesto animal e passou a utilizar o "comportamento" do mesmo em combate. Esta é a visão de meu falecido mestre Li Hon Ki. Por exemplo, ao invés usar minha mão para fazer um gesto teatral para imitar uma serpente, eu uso todo o meu corpo para me inclinar para trás quando recebo um ataque e, da mesma forma, tomo a elasticidade da defesa para o "bote" quando soco ou chuto no contragolpe. 

Nos estilos mais modernos de Wing Chun, notadamente na família de Ip Man, as referências aos animais mudaram aos poucos para copiar os gestos mais humanos, aqueles que fazemos no dia a dia. Assim, quando tomamos uma técnica como “Bong” (Asa), o nome enquanto substantivo é o membro do animal, mas, enquanto verbo, quer dizer "amarrar", "juntar". Para tornar os movimentos mais naturais e aplicáveis, os mestres estimulam os alunos a procurarem semelhanças entre o gesto técnico propriamente dito e ações biomecânicas semelhantes. Assim, uma continência, o gesto de jogar uma braçada de nado "crawl", uma criança que coça os olhos com as costas de sua mãozinha ao acordar, o Wing Chun copia estes gestos naturais para usar o "Bong" de acordo com cada situação. Essa é a visão de meu mestre atual, Sifu Gorden Lu. Aproximar o estilo de práticas do dia a dia torna cada gesto corriqueiro num gesto de treino. A psicomotricidade do Wing Chun moderno não separa a vida comum da vida marcial, elas são espelhos uma da outra. 

Entender o passado é muito importante para entender o que se faz hoje; todavia essa ideia de que tudo que é antigo e necessariamente melhor que o atual é algo muito usado para se ganhar dinheiro em cima do perfil erudito e intelectual do praticante do Wing Chun. É preciso entender que muito do que não é mais feito hoje foi jogado fora pelos mestres do passado, e isso certamente tem um motivo, não foi à toa. Estilos de luta se influenciam mutuamente todo o tempo, com maior ou menor velocidade, naturalmente, de acordo com as necessidades exigidas pelo ambiente e preferências de seus mestres. Achar que estilos melhores são estilos "puros" é um erro, embora bem-intencionado, porque não acompanha a história real do desenvolvimento das artes marciais.”  


4. Quais são os movimentos mais característicos do Wing Chun?

“Para um observador leigo, além dos socos "corrente" na posição vertical desferidos em uma saraivada veloz, certamente a base Yee Ji Kim Yeung Mah (com os joelhos voltados para dentro e os calcanhares para fora), movimentos como Tan Sao e Bong Sao e guarda com as mãos abertas na linha central. Isso causa um certo estranhamento e também curiosidade nas pessoas. O que a maioria não sabe é que os movimentos do Wing Chun estão também presentes em muitos outros estilos originários do sul da China, incluindo vários estilos de Karatê e, até mesmo, estilos do norte. A diferença é o grau de especialização que o Wing Chun atingiu no uso de pontes (bloqueios e defesas) e a sua busca pela simplicidade, mas não do jeito que as pessoas imaginam. 

No Wing Chun, não se trata do quanto eu consigo acumular, mas como posso adaptar e mesmo misturar os mesmos elementos defensivos a partir de ângulos e situações diferentes. Numa luta esportiva é muito importante que tenhamos poucos movimentos também, mas eles estão estritamente em função daquele ambiente, regras e igualdade de meios. A defesa pessoal pode envolver sim, a luta em ritmo esportivo e o praticante deve estar preparado, mas as pessoas se enganam ao julgar todas as artes marciais apenas por esta lente. As situações de defesa pessoal irrestrita têm um espectro muito maior de potenciais agressores e gravidade de ferimentos: pode envolver, por exemplo, desviar de um objeto que vem em sua direção por acidente, um soco desferido de surpresa por um oportunista, um golpe de bastão ou faca totalmente inesperados, uma luta em um ambiente confinado, evitar ambientes cheio de gente sem nada a perder, ao invés de imaginar que para ser bom deve-se lutar com todos e vencer.

Infelizmente, temos recebido notícias de muitos atletas multi campeões que perderam sua vida em situações de defesa pessoal que poderiam ter sido evitadas porque eles têm a falsa impressão de que sua capacitação para ser bem-sucedidos na competição lhes dá um salvo conduto de invulnerabilidade, mas quando saímos de um ambiente controlado entram fatores inimagináveis que somente o jeito de pensar de um sistema de arte marcial lhe dá mais amplas condições de adaptação.  Assim sendo, mentalmente falando, o movimento mais característico do Wing Chun é antecipar uma situação de perigo, e não remediar um problema. Só assim é possível "defender e atacar simultaneamente", característica mais marcante não só do Wing Chun como de outros estilos do Sul."



5. As facas borboleta são praticamente um símbolo do Wing Chun, quais outras armas chinesas há no estilo? 

"As chamadas Hudiedao (espadas duplas) tem sido enfatizadas no Wing Chun por causa do cinema, mas esta arma foi adotada praticamente no mesmo período em vários estilos do sul como resultado da popularidade que esta arma ganhou durante o começo até a segunda metade do século XIX. Muito utilizada na navegação mercantil, era item obrigatório como arma de curto alcance. Já em terra, na escassez de armas de fogo, era muito usada por milícias da baixa nobreza, fosse para o trabalho policial, fosse para a defesa de vilas e cidades, e até em brigas de gangues em comunidades chinesas na América. Ela tinha vários designs diferentes podendo ser usada como uma só espada longa adaptada para furar combinada com escudo, ou em dupla, dividindo a mesma bainha. O historiador marcial, praticante de Wing Chun e analista de sociedades antigas, Benjunkins, tem feito um fantástico trabalho que nos permite entender a dinâmica de mudanças daquela época. Com o desuso prático, diferentes estilos de Kung Fu que já haviam adotado estas facas foram mudando o seu design durante o século XX até o seu formato atual, mais curto, arredondado e largo (daí o provável nome moderno de "espada borboleta"). 

Outro fato que corrobora para minha crítica sobre a idealização da pureza de estilos nas respostas anteriores é que este formato de arma é raro nas artes marciais chinesas, e a sua guarda ao estilo ocidental mesmo sendo adotada há mais de dois séculos, é uma mutação moderna. O Wing Chun adaptou a arma a seu próprio repertório técnico e conceitos combativos, de forma que atualmente seu uso se parece demais com o uso das mãos livres, embora obviamente seja muito mais decisiva e letal. 

No Wing Chun, temos além das Baat Jam Dao (Facas de Oito Cortes, nome que Ip Man deu à sua forma de facas borboleta) há um bastão "rabo de rato" (por ser longo e afinado na ponta como um bastão de bilhar) chamado de Luk Dim Boon Kwan (Bastão de Seis Pontos e Meio), que dividimos historicamente com o estilo Hung Gar, embora no Wing Chun essa forma seja muito mais simplificada, seguindo os preceitos de praticidade do estilo. Em outros estilos de Wing Chun fora de Ip Man este bastão é mais curto e tem um maior grau de especialização, sendo a arma principal. O bastão longo do Wing Chun diz a tradição oral ser originalmente uma arma de campo, uma lança. Uma vez que para derrotar um homem com o bastão longo é preciso que se vença uma grande distância, o treinamento de facas versus bastão teria favorecido o estudo de bases triangulares associadas às facas e a ideia o bastão fornecido a ideia de manutenção da "Linha Central" presente no estilo de Ip Man.”  


6. O boneco de madeira do Wing Chun é bem conhecido no universo do Kung Fu Wushu, qual é a importância de treinar com este equipamento?

“O boneco de madeira, chamado Muk Yam Jong (Pilar do Homem de Madeira) fascina as pessoas por este aparelho remeter à habilidade do praticante em desferir golpes e defesas de forma curta e veloz, com aparente complexidade. O boneco também exorta em quem o vê aquele sentimento legítimo de que somente a prática conduz à perfeição, simbolizado por aquele ator solitário que, nos filmes, continua a praticar sozinho mesmo quando não há mais ninguém por perto. A realidade é que a maior parte das pessoas não tem nem bons bonecos para a prática, acha que qualquer similar basta, o que leva a erros de execução grosseiros, tampouco sabem para que serve este aparelho, como usá-lo para refinar suas habilidades, por vezes passando anos de suas vidas praticando algo que não as levará a lugar algum. 



As pessoas acham que ao praticar com o boneco tem-se à sua frente um adversário de frente para você, que você está a lutar com seu adversário. No entanto este implemento é usado para treinar gestos das três primeiras formas do sistema Wing Chun de forma dinâmica, imitando o posicionamento de defesas não mais em relação a você mesmo, mas em relação ao adversário de qualquer posição e o modo correto de transacionar entre estas defesas seguindo os princípios de aprendizado do sistema Wing Chun. Isso estimula o praticante variar entre as posições de forma criativa e segura, mas ainda simbólica, ainda como num Tao Lu (Kuen To, Kati, forma). Assim sendo, dentro do sistema Wing Chun, o boneco de madeira não é um conteúdo técnico, mas cultural, de refino do sistema depois que se domina a fase de mãos livres. Por isso se chama informalmente de "108 Muk Yam Jong", os cento e oito movimentos representam as trinta e seis técnicas de cada uma das três formas fundamentais. 

O boneco é sim importante, mas não imprescindível, uma vez que você já conhecia as técnicas. Como qualquer outra forma, não lhe deixa melhor em luta, mas aumenta sua memória muscular na transição entre os movimentos e lhe dá condições de criar no calor do momento (somente a quem já treina e está habituado a combates e sparrings), fator de adaptação importante para situações irrestritas ou de rua, onde as coisas normalmente acontecem de modo repentino e caótico. Sem estas condições prévias o uso do boneco é quase que inútil, uma vez que ninguém ficará com os braços estáticos na sua frente para você se defender.”  


7. O cinema ajudou muito na divulgação do estilo Wing Chun?  

“Sem a figura de Bruce Lee (1940-1973) o Wing Chun ainda seria um ilustre desconhecido. O Wing Chun deve sua popularidade ao cinema por conta deste astro do passado, elevado à categoria de ícone mundial até hoje, mesmo quase cinquenta anos após a sua morte. Embora já fizesse um tremendo sucesso na Ásia no comecinho da década de setenta, foi quando o filme Enter The Dragon (Operação Dragão) tornou-se um estouro de bilheteria nos EUA que as pessoas quiseram treinar Kung Fu e o estilo de Bruce Lee aqui no ocidente. Sua morte precoce justamente na época do lançamento deste filme levou as pessoas, perplexas com suas habilidades, a procurar pelo Jeet Kune Do, estilo que ele havia criado alguns anos antes. Na falta deste estilo ainda muito incipiente, as pessoas procuravam o Wing Chun, uma vez que Lee havia sido aluno de Ip Man, a única pessoa a quem se referiu como sendo seu mestre em vida. Por mais que o Jeet Kune Do guardasse muitos dos princípios originais do Wing Chun, Bruce Lee era deveras crítico dos sistemas tradicionais. Isso criou um problema: o Wing Chun, um estilo tradicional, nos deu Bruce Lee e este por sua vez popularizou nosso estilo, mas Bruce Lee era aquilo que as pessoas queriam se tornar para manter viva a sua memória. O Wing Chun era apenas um meio de ter a bagagem de base de Bruce, e assim quem sabe um dia ser como ele, ou encontrar alguém que ensinasse o Jeet Kune Do para facilitar o processo. 

À medida que essas pessoas começaram a treinar Wing Chun com outros estudantes de Ip Man, muitas delas se apaixonaram pelo Wing Chun pelo que a arte é, não mais pela ideia de ser Bruce um dia; entenderam sua mensagem e estudaram com afinco por décadas. Mas até que saísse o filme Ip Man (O Grande Mestre, 2008) com Donnie Yen no papel principal, não havia a vontade por parte do grande público de treinar Wing Chun por aquilo que é o Wing Chun, ou seja, o Wing Chun não era "pop", a verdade é que ninguém sabia o que era. Agora, em qualquer mesa de bar você pode topar com alguém que tenha assistido ao menos um filme original da franquia, mesmo que nunca tenha treinado nada. Donnie Yen não é uma apoteose muscular, uma espécie de semideus da genética como fora Bruce Lee. Ip Man, cuja personalidade e temperamento foram melhor retratados por Yen, era o sujeito pacato que de uma situação confortável ficou pobre, passou dificuldades, mas manteve a dignidade. O Ip Man do filme usou sua arte não apenas para se defender, mas para restaurar o orgulho de seu povo, numa época de humilhação. Assim sendo, passou-se a ideia que o Ip Man, o da vida real, tanto defendia: que o Kung Fu é morto até que alguém o traga à vida. E, Ip Man trouxe, tanto em vida quanto depois de morto; como pessoa real e depois como personagem. Qualquer pessoa pode ser um Ip Man se batalhar muito, se tiver Kung Fu, já que este termo pode ser traduzido como "trabalho duro". Pouquíssimas serão Bruce Lee, não importa o quanto se esforcem.” 


8. Qualquer pessoa pode praticar o Wing Chun ou há algum tipo de restrição? 

“O Wing Chun foi feito para pessoas com restrições e não o contrário. Normalmente quando pensamos em arte marcial, a única coisa que conseguimos enxergar são duas pessoas jovens, em iguais condições de peso, medindo habilidades num combate justo. No mundo real não é assim que funciona. Você pode ser humilhado por alguém em posição de chefia em seu ambiente de trabalho, pode ser atacado na rua por múltiplos assaltantes. Pode ser atacado de surpresa por um sujeito armado. Ter o tapete puxado por alguém que você ama e confia. 

Em Wing Chun não se trata do quanto você pode aprender ou render fisicamente, mas o quanto você faz com aquilo que você tem, o quanto pode antecipar e evitar problemas e, caso não consiga, se adaptar à situação adversa. Já supomos de saída uma posição de desvantagem. Por termos em nossa origem simbólica a ideia de que a luta fora criada por uma mulher, as defesas usam ângulos e contrapesos tirados da física para que nossas defesas suportem ataques de alguém maior e mais forte. Quebramos o ritmo para parar um adversário veloz. Usamos alavancas biomecânicas para gerar mais força e procuramos objetividade no contra ataque. Eis aí um resumo da teoria do sistema. Mas não pense que isso tudo é muito diferente de outras artes marciais; todas elas fazem a mesma coisa de modo levemente diferente, com outras ferramentas. 

No Wing Chun, entretanto, o foco dentro de sua proposta faz com que, por exemplo, um homem baixinho e gordo não tenha de chutar na altura da cabeça, por exemplo, mas no joelho. As aplicações práticas favorecem o relaxamento e uso adequado da força em espaço curto de tempo ao invés da resistência, que perdemos mais rápido com a idade. Se eu chuto sua canela e você olha para baixo, eu pego você com minha mão dianteira. Eu faço você olhar para minha mão enquanto lhe chuto a barriga. Isso faz parecer que sou rápido, mas na verdade eu apenas usei um truque. Segundo Sifu Gorden Lu estes truques são mecânicos, distrativos, psicológicos, etc. 

Nós usamos golpes na região genital. Mas qualquer idiota com um pouco de malícia também pode fazer isso. Como o Wing Chun conduz naturalmente suas partes contundentes para as partes frágeis do adversário, isso a maior parte dos mestres não sabe explicar. Na minha escola já tive alunas (aprendem mais rápido no geral pelo fato do estilo ser muito intuitivo), idosos (tenho atualmente o Ivan, que quando começou tinha minha idade atual e hoje tem setenta anos) e mesmo um praticante com nanismo. Tenho o professor de música e designer Lucas, que veio por indicação médica (tem toda a coluna fixada por parafusos). Todas estas pessoas são potenciais vítimas de agressores mais fortes. Mas seria idiotice tentar fazê-las render fisicamente além de suas capacidades, ou achar que lutar em situação de desvantagem resolverá algo. Eu as treino para superar suas dificuldades, para serem pessoas melhores hoje do que foram ontem. Para serem mais atentas e evitarem conflitos. É para isso que serve o Kung Fu. Para tornar a sua vida melhor. No Kung Fu tradicional a luta é método, não fim. Kung Fu é a expressão psicomotora do pensamento clássico chinês.”  


9. Muito obrigado pela sua participação, Sifu Marcos! Foi uma honra aprender sobre o Wing Chun com você. Por favor, qual mensagem você gostaria de deixar para os nossos leitores?  

“Durante a minha carreira enquanto divulgador desta arte sempre tentei focar nos leigos e iniciantes, por isso gostaria de me dirigir primeiro a este público e dizer que não importa o quanto demore, só comece a treinar quando tiver a certeza de estar numa escola legítima e com um mestre ligado indiscutivelmente à genealogia daquele estilo em questão. Com alguém que tenha treinado com afinco ou esteja com igual esforço no treinamento de estudantes e na preservação das tradições chinesas. A internet nos dá ferramentas para checar isso. Usem-nas. 

Por outro lado, há praticantes seguindo mestres legítimos porém em escolas com posturas anti éticas, arrogantes e por vezes alienantes, com características de "seita". Muitas vezes estes mestres usam a vontade dos alunos de se formarem e os exploram financeiramente por anos, para apresentar em contrapartida um resultado pífio. Hoje eu vejo professores bem intencionados formados por pilantras ou seguindo mestres chineses apenas por serem chineses, quando muitas vezes têm perto deles mestres que tem uma vida de experiência e igual legitimidade. 

Se você quer se aproximar do Wing Chun tem de saber que não será um lutador esportivo famoso apenas lutando Wing Chun, que o sucesso não vem de derrotar seu inimigo com golpes espetaculares, mas passar longe de brigas e conflitos desnecessários. Que suas pequenas vitórias na academia devem se refletir na sua vida. Paradoxalmente entretanto, àqueles que tem perfil mais erudito e que tanto amam a cultura do sistema, digo-lhes que uma arte que somente é praticada, mas não lutada, é vazia de espírito. Este tem sido o principal problema do sistema Wing Chun. Para que a teoria tenha sentido é preciso chocá-la com seu teste na realidade do combate livre, mesmo que com pouco contato. Para ter noção de distância, saber dosar energia para não fatigar, noção de equilíbrio, saber das próprias potencialidades e limitações, não há outro caminho, é preciso arriscar minimamente. Se o seu mestre não lhe conduz ao combate em sua escola, por mais que o objetivo final não seja esse, dê o fora, não importa ou quão legítimo este mestre seja. Sua ambição por se formar, treinar em uma boa escola é legítima, mas ela não deve ser superior a viver algo em sua plenitude. Para o domínio do Wing Chun, a noção de tempo correto, timing, é algo imprescindível. Não perca seu tempo com quem não vale a pena. Tempo é algo precioso demais para ser jogado fora.” 





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