UMA FACHADA TRADICIONAL PARA NOSSA SEDE







Sifu Marcos em postura de agradecimento: um sonho realizado a muitas mãos. 



É inegável que muitos que procuram o Kung Fu, pelo menos inicialmente, não estão interessados apenas na ideia de lutar em si. Há um visível interesse estético que levou pelo menos duas gerações de praticantes, no mundo inteiro, a partir dos anos setenta, a se interessar por aqueles chutes plásticos, golpes tão belamente perigosos, desferidos por geniais mistos de atores e atletas nos filmes de artes marciais. Sempre vestidos com túnicas imponentes em cores intensas, braceletes e calçados, com as quais realizam coreografias fantásticas, seja com armas mortais que manejam com habilidade de malabaristas, seja com mãos e pés tornados ferramentas de batalha.



Cena de O Tigre e o Dragão, Ang Lee, 2000

 
E não para por aí, pois nos filmes de época, a grande maioria dos que fazem sucesso no ocidente, a reprodução de templos, cidades antigas, suas construções, objetos e utensílios criam especialmente nos jovens a vontade de repetir em suas vidas, ao menos parcialmente, o que é visto nos filmes: o mocinho dos filmes de kung fu amiúde é um sujeito comum, muitas vezes fraco ou injustiçado que, ao se dedicar a um treinamento, guiado por um bom mestre, tem a possiblidade de se tornar ele mesmo expressão dessa beleza clássica, antiga - eterna. Sim, porque o que é intrinsicamente belo é via de regra reflexo do que é bom e perpétuo. 


Entrada do Ip Man Tong em Futsan, uma das referências visuais do nosso projeto


Não demora muito até que o jovem aprendiz, saído da frente das telas para uma escola na vida real, perceba que as coisas são mais difíceis e que a tal habilidade que é mesma a definição adjetiva de Kung Fu, "habilidoso", exige a outra definição da expressão, só que a substantiva. Kung Fu quer dizer quase que literalmente "trabalho duro" e nada tem de glamoroso. Pelo menos não como nos filmes.  

Mesmo descobrindo que o caminho é difícil, que o mais importante é o caminho, e não se ele é ou não lindo esteticamente falando, nos estilos tradicionais a carga de cultura folclórica chinesa impregna a arte: ao lado da luta há práticas que tem mais a ver com o folclore, com a escola em si e a manutenção do seu legado, de geração a geração. No Kung Fu, o combate é um aspecto da luta maior que é a vida, e se isso não se reflete no dia a dia, muito de seu sentido é perdido.   


Nas escolas antigas de artes marciais chinesas durante muito tempo foi proibido funcionar de forma aberta e pública. Descobrir um grupo de praticantes poderia implicar em sérias perseguições. No período entre guerras e revoluções houve períodos de avanço e retrocesso. Com a popularização do Kung Fu muitos mestres tradicionais migraram para o ocidente e com eles práticas que ganharam sólida proteção no mundo livre, enquanto algumas dessas práticas chegaram até mesmo a sumir na China, que hoje procura um resgate de algumas dessas tradições perdidas. 

Uma dessas tradições são as placas de anúncio, ou Jiu Pai, normalmente feitas em madeira com caligrafias esmeradas não raro feitas por artistas especializados. Elas podem se limitar à descrição do local ou do serviço oferecido, ou ir além e representar uma poesia ou mensagem intrinsicamente ligada à atividade ou tradição exercida naquele local. 



Sifu Marcos no Museu de Ip Man, China. Repare na disposição das placas.



Na arquitetura chinesa há uma milenar tradição de emprego de madeira entalhada. Infelizmente na tradição de placas de madeira, tanto a demanda quanto os profissionais envolvidos no processo vão sendo substituídos por materiais e técnicas mais modernas. Isso na própria China. 

Nossas demandas aqui no Brasil contudo eram bem mais modestas. Queríamos um Mo Kwoon (Sala de Guerra ou Salão Marcial), o nosso local de prática, que tivesse os principais elementos culturais vistos numa escola ou família de Wing Chun, que dentre os estilos de Kung Fu é um das que, por incrível que pareça, não carrega tantos elementos folclóricos quanto outras escolas. A ideia central do Wing Chun além da defesa é a utilização de poucos elementos técnicos, por isso a busca pela simplicidade também deve ser refletida no sentimento estético desta arte marcial. Fazendo uma comparação bem grosseira, uma academia de Wing Chun deveria em tese se parecer menos com uma catedral gótica e mais com um pequeno mosteiro, ainda que sem afetar pobreza ou falsa humildade. Mas como faríamos todo este processo, seguindo a linha de raciocínio do sistema sem cometer erros grosseiros ou, para usar uma expressão do arquiteto Victor Tironi, autor do projeto arquitetônico "não ficar parecendo um pastiche de obra chinesa"? Não hesitamos em pedir ajuda a nosso atual Sifu, Gorden Lu, uma vez que ele mesmo, por ser descendente direto de um Grão Mestre da luta, carrega em si todo o conhecimento cultural suficiente para essa empreitada, além de ter um profundo conhecimento de Feng Shui. E assim foi. 

Para a fachada imaginamos inicialmente um bordão tradicional com o nome da escola, "Brazilian Wing Chun Academy", com placa em madeira talhada em baixo relevo. Para que ficasse tradicional entretanto, não poderíamos colocar como está em nossa página do Facebook, por exemplo, simplificado e seguindo a lógica de leitura ocidental: "巴西詠春館" 

Dessa forma, mudamos para: "館拳春詠西巴". Assim mesmo, "de trás para a frente", lido da direita para a esquerda, e com um caractere a mais por sugestão de Sifu Gorden, o "拳" ou "Kuen" (lê-se K'un), "Punho", que colocado no final do nome de uma arte marcial chinesa, designa formalmente um estilo. Exemplo; Wing Chun Kuen, Hung Gar Kuen etc. 




De forma tradicional o enunciado diz, da direita para a esquerda:
Ba Si Wing Chun Kuen Kwoon, ou seja Escola Brasileira dos Punhos de Wing Chun.



Durante o começo dos anos dois mil, aqui em Salvador, certa feita vi que meu falecido Sifu Li Hon Ki havia colocado três inscrições em papel a ladear uma porta sob um pórtico, sendo duas delas uma poesia em anagrama. Perguntado por mim se aquilo tinha algum significado além do que ali estava escrito, ele disse: essa frases colocadas logo na entrada conferem proteção ao local. 

Eu já tinha por época do projeto algumas poesias ligadas ao Wing Chun, mas quando mostrei a Sifu Gorden o que eu pretendia, ele me disse para usar essas: 


詠自葉問滿桃李
春風化雨世代傳

Isso nos causou uma surpresa e um certo orgulho, uma vez que essa versão de poesia chinesa tradicional fora adaptada para louvar a figura de Ip Man por GM Lo Man Kam, pai do Sifu Gorden e sobrinho do Patriarca. Por essa época tive apoio também do professor de idioma chinês Rhuan Cavalcante, que me deu várias dicas para uma melhor tradução das frases em português, seu contexto literário, e mesmo sugeriu caligrafia e tirou medidas para a confecção das placas, até encontramos o formato atual. Meus alunos Pedro e Danilo, profissionais de comunicação visual, me ajudaram bastante, e a primeira versão do projeto foi feita por este último. Victor Tironi, meu aluno à época, assumiu o projeto arquitetônico, inspirado por seus conhecimentos em budismo e arquitetura oriental. 


GM Lo Kam, pai de Sifu Gorden Lu, adaptou ditos chineses famosos, criando a poesia sobre o Wing Chun de Ip Man


Mas havia um problema: era 2020 e havia começado a grande agitação sanitária mundial em torno de um vírus vindo justamente da China, isso mexeu inicialmente com a motivação para tal empreitada. Mas ao mesmo tempo que houve um desânimo inicial, a vontade de enfrentar aquele período difícil, vencer tanto o vírus quanto aproveitar a crise para impulsionar os negócios e deixar um marca fez que um espírito de equipe tomasse conta dos envolvidos, e o projeto então começou. 



Destaque de uma das plantas do projeto do arquiteto Victor Tironi. Confira com a versão final logo abaixo. Ficaram parecidas? 


Resultado final. Ainda haverá modificações na calçada.  


Depois disso sentimos o baque econômico e passamos mais de um ano sem tocar na obra que já estava quase pronta, mas faltava ainda uma peça chave: os detalhes da decoração, que embora simples dariam todo o ar clássico e estético necessário. O país estava em crise, era o auge da pandemia. Os preços para fazer o material em concreto, impossíveis de serem cobertos. O que fazer? Foi quando entrou em ação o marceneiro Miguel Teixeira filho, meu estudante do interior da Bahia e que é responsável pela confecção dos meus Muk Yan Jong (Boneco de Madeira). Embora ele não tivesse grande experiência com carpintaria (uma outra área do trabalho de madeira mais direcionada à indústria) ele aceitou o desafio de produzir as peças totalmente em madeira e encaixá-las no material de alvenaria que já estava pronto. 

Uma reunião com toda a equipe foi feita e as coordenadas passadas a mestre Miguel Teixeira

O projeto de Victor Tironi incluía detalhes com o brasão de armas da família Ip Man. As colunas possuem adornos que são tanto gregos quanto chineses, representando assim a absorção e complementação das diferentes culturas. 

As peças superiores eram de difícil execução para um não iniciado, mas Mestre Miguel cumpriu a missão com extrema habilidade: Linhas simples não podem ser confundidas com mero simplismo. 




Foram meses de intervalos entre as fases seguintes, mas eis que finalmente chegaram as duas últimas semanas, intensas, cansativas, mas nem por isso deixamos de treinar. Seguem alguns registros:



Miguel (esq.) e Sam ajustam coluna. 


Recebemos João, professor de Thai e parceiro de treino de Sifu Marcos e que lutou pela escolas misturando com Wing Chun

 Treino de sexta com light sparring para Jedah (esq.) no final, testado por mim e por Fábio. 

O sonho que se sonha junto virando realidade

Começo da pintura com Fábio Oliveira

O trabalho seguiu por mais uma semana adentro depois que os alunos foram embora. Até o Sifu teve de meter a mão na massa. 


Mas a esta altura o leitor deve estar a pensar que pulamos a parte das inscrições laterais. Não, não, apenas deixei para o final. Isso afinal poderia ser um texto à parte, então, em resumo, caso o leitor tente traduzir literalmente os textos, irá se frustrar bastante, mas convido que o faça pelo Google tradutor (se é que já não fez) e compare com a tradução interpretada pelo tradutor e professor de língua chinesa Rhuan Cavalcante: "Na primeira sentença (do lado direito) é usado o termo "Young" (Wing, de Wing Chun) de Ip Man é cheio de "ameixas e pêssegos" uma expressão usada na China para designar "estudantes e discípulos". Vejamos então a tradução do chinês para inglês e depois adaptada para o português que fiz a partir da interpretação de Sifu Gorden Lu:




"O Wing Chun de Ip Man é tão bom que tem muitos estudantes em todos os lugares"



Ainda segundo o Professor Rhuan Cavalcante, na segunda sentença (esquerda), o ideograma "Chun" faz um complemento com o da direita, formando a palavra "Young Chun" (Wing Chun). Assim, traduzido literalmente seria 'os ventos e chuvas da primavera são transmitidos por muitas gerações". A última parte do verso significa, na China, "uma educação com fundamentos e solidez". Em resumo uma tradução aproximada pode ser, de acordo com Sifu Gorden:



"e as pessoas que aprenderam o passarão de geração em geração."



O Mo Kwoon é o local em que através do Kung Fu podemos melhorar nossas vidas. Este local não é apenas o endereço da prática, mas um lugar para honrar os mortos que nos passaram arte, manter a mesma viva e pulsante no presente, para que ela possa se manter relevante e necessária para as gerações vindouras. "Tudo o que é bom começa com um bom nome". O nosso nome e legado é Ip Man Wing Chun - no Brasil ⚔️



 

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6 Comentários

  1. Perfeito! Parabéns pelo brilhante trabalho. Deveria ser tombado como patrimônio de referência a introdução das artes marciais na Bahia e no Brasil.

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  2. Muito merecido a homenagem e a conclusão deste mokwoon muito especial com um Sifu tão especial quanto.

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    1. Airson, muito obrigado. Meus sobrinhos kung fu são os melhores, uma benção que Deus me deu através do meu irmão Sifu Florentino. Espero que possamos nos reencontrar novamente, treinar e jogar muita conversa fora um dia novamente. Forte abraço, e todo sucesso em seus projetos.

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  3. Muito bom Sifu Marcos!! Parabéns a você e toda a equipe pelo excelente trabalho! A fachada ficou um misto de simplicidade e sofisticação! Que Deus os abençoe e os capacite mais a cada dia!!

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    1. Muito obrigado. Devo isso mais ao time, que foi desde meu atual Sifu, Gorden Lu, que me deu autorização para usar a poesia e símbolo de sua familia de sangue e meus alunos e parceiros, para ter este tipo de ousadia em tempos difíceis. Fico muito feliz que tenha gostado. E sim, que Deus nos abençoe a todos. Amém.

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